Nossa inspiração - Antonin Artaud

Antoine Marie Joseph Artaud, conhecido como Antonin Artaud (Marselha, 4 de setembro de 1896 — Ivry-sur-Seine, Paris em 4 de março de 1948) foi um poeta, ator, escritor, dramaturgo, roteirista e diretor de teatro francês de aspirações anarquistas. Ligado fortemente ao surrealismo, foi expulso do movimento por ser contrário a filiação ao partido comunista. Sua obra O Teatro e seu Duplo é um dos principais escritos sobre a arte do teatro no século XX, referência de grandes diretores como Peter Brook, Jerzy Grotowski e Eugenio Barba. Seus restos mortais se encontram no Cimetiere de Marseille, França.

O teatro tem sua origem nas práticas e ritos tradicionais; nas culturas primitivas, ritual e teatro são uma só coisa. Não há divisão entre estética e vida, ou momento especial de vida, pois o ritual não é um momento cotidiano – pelo contrário, é justamente o momento de exceção no qual o Ser se apresenta ao homem. Ou seja, a relação que o homem estabelece com um mundo da completa alteridade.



Este ato é tradicional em culturas primitivas e em práticas teatrais como o teatro de Bali, no qual o ritual é preponderante. O “público” é impelido a ajudar o personagem principal, Barong, o deus do bem. No teatro de Bali a luta entre bem e mal é trazida à terra por um ator que veste uma máscara produzida a partir de uma árvore sagrada. Os participantes tentam interferir na luta. São “hipnotizados” pelo deus do mal, que lhes obriga a se flagelarem com facas, mas o deus do bem não permite que a arma fira seus seguidores. Tal ritual conduz a um transe profundo: os participantes tentam se esfaquear, mas a lâmina não penetra suas carnes, criando uma tensão que só termina na vitória final de Barong.



Também na Grécia, antes de ser adotado pela pólis, o teatro era extremamente ritualizado. Suas origens vêm de práticas rituais como os mistérios de Elêusis e as bacanais de Dionisos, formas de revelação da realidade e de reatualização do cosmos, da ordem do mundo. As religiões pré-olímpicas da Grécia arcaica, os mistérios eleusianos e dionisíacos compreendiam uma série de ritos que ensinavam ao homem como viver e morrer com plenitude.



Tais práticas rituais não perderam por completo seu lugar: as religiões institucionais ainda hoje mantêm um regime de ritos e práticas periódicas que garantem aos praticantes a oportunidade de se reatualizarem com as passagens da vida, o que fica explícito em ritos como o batismo ou o casamento.



Em edições anteriores do Laboratório de Poéticas abordamos diversos exemplos destas práticas e sua relação com a arte contemporânea. Aqui é necessário apenas lembrar, junto ao historiador Mircea Eliade, que o homem arcaico tem necessidade de apreender o mundo pelo mito, enquanto o homem moderno típico o apreende através da ciência como forma hegemônica de conhecimento. O típico homem moderno não crê nas grandes iniciações. O conhecimento é pautado pela razão e não há espaço para o mito – a não ser para o mito da razão e da ciência.



O homem arcaico vive a integridade dos fenômenos, uma visão que na contemporaneidade alguns chamam de holística (hólos significa Todo, totalidade, integralidade). Esse holismo do homem arcaico lhe dá grande vantagem sobre o homem da era clássica da Grécia antiga. A passagem do período arcaico para a época clássica está diretamente relacionada à desagregação dos primitivos clãs, frátrias e tribos, e sua gradual substituição pela ordem oligárquica, e, posteriormente, democrática das pólis ou cidades.



O período clássico é dominado pela razão, pela medida e temperança. Toda tentativa de desmedida, de alcançar a totalidade de uma só vez, através do transe catártico, passa a ser vista como uma agressão ao métron, isto é, ao equilíbrio da ordem. Estabelece-se a Paidéia, novo cânone ou modelo cultural para garantia do status quo. O homem grego clássico, que vive para a política das cidades e não mais para a tribo, passa a ver a realidade em fragmentos, em postas e retalhos. Na pólis a desmedida dá lugar à purificação, à ascese. Este modelo fragmenta a realidade e a torna laica, sem encantamento. Os ritos para Dionisos, deus da embriaguês, perdem seu lugar para a religião olímpica de Apolo, deus da medida e da razão (que passam a ser identificadas à beleza).



Posteriormente, o dionisismo arcaico e o apolinismo clássico seriam hibridizados pelos cultos órficos. Altamente influenciados por pensadores pré-socráticos como Pitágoras e Empédocles, neles podemos ver uma tentativa de unir o mito à razão, e as práticas místicas a uma leitura de mundo mais matemática, abstrata e sublimada.



Na contemporaneidade muitos pensadores vêm alertando para o modo classicista, canônico, racional de olhar as coisas. Nietzsche já havia nos alertado para a perda do dionisíaco e a ditadura da racionalidade. Resta procurar entender esse processo, onde, quando e como o encantamento do mundo se perdeu, e tentar reatar de alguma maneira a linha entre o período arcaico e a contemporaneidade.



Muito tem sido feito no campo da arte. Influenciados pelo Zeitgeist do reencantamento, nomes como Antonin Artaud, Joseph Beuys, Jerzy Grotowski, entre outros, retomaram as vivências com mitos e rituais, buscando as relações entre a arte, a vida e o sagrado através da reelaboração de cerimônias, experiências com drogas, vivências com tótens de espíritos animais e outras modalidades do sagrado primitivo que vem sendo praticadas em algumas das tendências da arte contemporânea mais radical e visceral.



O ritualizador da vida



O poeta, ator e encenador francês Antonin Artaud chega à mesma conclusão de Nietzsche, mas com relação ao teatro francês de sua época. Já em sua juventude, junto ao grupo surrealista de Paris nos anos 20, renega a tradição clássica da arte e da literatura. A abolição das obras-primas e o elogio da crueldade, entendida como forma radical de uma poesia atroz, são marcas de sua vida e arte. Quando Artaud entra em contato com o teatro balinês sofre uma profunda crise pessoal. Sua viagem ao México, onde viveu junto aos índios tarahumaras e foi iniciado no uso ritual do peiote, um cacto alucinógeno, faz com que ele passe a reivindicar a magia como expressão original da arte.



Para Artaud a dor sempre esteve ligada à existência; sofreu muito devido às seqüelas de uma meningite que teve aos cinco anos de idade, passou a vida utilizando láudano para aliviar as dores e no final da vida adquiriu câncer no reto. Seu próprio corpo sempre foi um laboratório para suas teses sobre o teatro e a vida. O corpo é antes de tudo um veículo do Ser no mundo, e nenhum momento da vida escapa ao sofrimento, causado pelo mal único, “ o sofrimento único de existir”



Essa forma de sentir o mundo vai abrir para Artaud um caminho que o levará ao que chamou de Teatro da Crueldade, através do qual as potencialidades humanas devem ser explicitadas de forma agressiva e contundente: “não é possível continuar a prostituir a idéia de teatro, que só é valido se tiver uma ligação mágica, atroz, com a realidade e o perigo” .



Artaud passa boa parte de sua vida em clínicas de recuperação, sempre mantendo correspondência com seu médico e amigo Jacques Rivière. È recorrente em suas cartas a Rivière a questão de uma impotência, de um desejo criativo que não pode se expressar devido a dificuldades provenientes de seus sofrimentos físicos – que não o impediram, entretanto, de viver lucidamente e relatar de forma brilhante suas experiências.



Ator de cinema e escritor participante do movimento surrealista em sua primeira fase, Artaud aproxima-se cada vez mais do teatro, que para ele não é senão conflito. O palco é lugar de impulsos ditados pelo inconsciente, pelas imagens de mitos e de arquétipos vorazes. Para Artaud a cultura ocidental perdeu sua vocação para aquilo vem de dentro, tornado-se apenas um invólucro vazio e mecânico.



Em viagem ao México, defronta-se com uma cultura ancestral e imanente onde tudo é mágico: “uma vez que se trata do México, não existe arte e as coisas servem. E o mundo está em perpétua exaltação”. Esta visão o faz constatar a falência da cultura ocidental e intensificar sua investida contra a estagnação do mundo a sua volta através da ação teatral. Suas criações, marcadas pela quebra das convenções, provocaram grande antipatia do público. Ele se orienta para “devolver ao teatro a noção de uma vida apaixonada, convulsa; e é neste sentido de rigor violento, de condensação extrema dos elementos cênicos, que se deve entender a crueldade sobre a qual ele deve se apoiar” ..



Conforme Cláudio Willer, um dos primeiros a divulgar seu nome no Brasil, Artaud “năo era um conservador, năo estava interessado na restauraçăo de alguma cultura tradicional. Tanto sua fascinaçăo pelo hinduísmo, pela Cabala, pelas práticas xamânicas, o que o interessa é o confronto com nossa civilizaçăo, o efeito que tudo isso possa ter para alterar nossa percepçăo e nossa consciência” .





Vida e obra não podem ser diferenciadas em Artaud: toda a sua vida é um poema da crueldade. Ele próprio declara trazer o drama para a vida, como uma forma de entrar em ressonância com aquele mundo mágico a que ele sempre se refere. Daí que Artaud seja um dos principais precussores de uma das mais significativas expressões contemporâneas, a performance, na qual as fronteiras entre arte e vida imediata são abolidas.





REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS



ARTAUD, Antonin - Oeuvres completes, Gallimard.

ARTAUD, Antonin - O teatro e seu duplo. São Paulo, Martins Fontes, 1993.

BARRAULT, Jean Louis - Réflexions sur le theatre. Jacques Vautrain, Paris, 1949

ELIADE, Mircea - O sagrado e o profano. São Paulo, Martins Fontes, 1992.

MULLER, Carol (org) - Le Trainning de L’acteur. Actes Sud, Arles, 2000.

TURNER, Victor W - O processo ritual: estrutura e antiestrutura. Petrópolis, Vozes, 1974.

VIRMAUX, Alain - Artaud e o teatro, estudos. São Paulo, Perspectiva, 2000.

WILLER, Cláudio - Os escritos de Antonin Artaud. Porto Alegre, L&PM, 1986.